Conheça a cidade do interior do Rio que já teve mais de 70 cinemas
No início do século XX houve uma espécie de competição velada na América Latina para ver quem seria a “Paris dos Trópicos”. A disputa foi além das capitais, e entre muitas e variadas cidades, Campos dos Goytacazes tentou entrar nessa. Era uma época na qual, com sua economia adoçada por toneladas de cana-de-açúcar, o município era um exemplo cintilante de um Brasil que deu certo, ao menos por uns anos.
No seu auge, Campos chegou a contar com 26 usinas de cana-de-açúcar e em 1973, registrou uma safra recorde de 611 mil toneladas de açúcar, alimentada por financiamentos estatais e programas como o Pró-Álcool.
Esse vigor econômico fez brotar cinemas, cafés, livrarias e uma imprensa trepidante. Nos anos 1960 e 70, Campos chegou a ostentar impressionantes 68 salas de rua: 20 no centro urbano e 48 espalhadas pelos distritos, atingindo um raro grau de descentralização cultural. Nessa época, ela era a terceira cidade com mais cinemas no Brasil.
Mas, como todas as glórias, essa também murchou. A modernização da produção migrou para outras regiões levando à decadência do setor sucroalcooleiro campista. Hoje, com as salas de exibição transformadas em farmácias e igrejas evangélicas, a cidade tenta recuperar o roteiro perdido. Inclusive com uma iniciante produção local.
Se a má notícia é que ninguém de Cannes ainda ligou, a boa é que o cinema campista resiste. E como toda estrela esquecida, pode muito bem estar preparando um retorno triunfal.

Quando foi a era áurea do cinema em Campos?
O auge cinematográfico de Campos dos Goytacazes é um período que compreende as décadas de 1950 e 1970, quando a cidade contava com 68 salas de exibição. Era uma verdadeira democratização do projetor: havia cinemas não apenas no centro, mas também em distritos como Goitacazes, Baixada Campista e até em áreas rurais. Isso fazia parte do cotidiano da cidade em plena expansão cultural e econômica, quando o hábito de ir ao cinema rivalizava com a frequência à missa de domingo.
Boa parte desse fenômeno se deve ao dinamismo econômico da região naquela época, impulsionado pela agroindústria canavieira e pela atuação intensa do setor comercial. Campos era rica, ambiciosa e profundamente vaidosa — e o cinema era seu espelho mais reluzente.
A população, que passava dos 300 mil habitantes, sustentava com entusiasmo essa vasta rede de exibição que, como se verá adiante, desapareceu quase tão rapidamente quanto surgiu.
Qual é o cinema mais antigo da cidade?
O Trianon foi inaugurado em 25 de maio de 1921, mas como teatro, e depois ganhou telona. Portanto, o primeiro cinema de rua documentado em Campos foi o Cine-Teatro São Gonçalo, inaugurado em 1930 no distrito de mesmo nome. Era um espaço multifuncional, como mandava o figurino da época: exibia filmes, e, eventualmente, servia até para reuniões políticas. Sua construção marcava o início da era dourada do entretenimento campista fora do eixo central.
Seguiram-se outras salas clássicas, como o Cine Capitólio, o Goitacá. A diversidade de salas não era mero luxo, era necessidade: a classe média emergente da cidade queria mais do que caldo de cana, mas acesso à gama de emoções que só o escurinho do cinema faz aflorar.

Quantos cinema de rua restaram?
Atualmente, nenhum dos cinemas de rua históricos permanece em funcionamento. O último a apagar as luzes foi o Cine Capitólio, que fechou suas portas em 2001. O Cine Goitacá, outro símbolo, virou igreja nos anos 1990. Hoje, os campistas assistem aos blockbusters nos multiplex de shoppings.
Embora tecnologicamente superiores, essas salas não têm a alma ou aquele ranger das poltronas dos antigos cinemas do centro. A perda é uma amputação cultural.
Quais e quantos filmes ou novelas foram filmados em Campos?
Campos foi cenário de filmes e novelas históricas notáveis em âmbito nacional como Ganga Zumba (1963), Xica da Silva (1976), Escrava Isaura (1976), Na Boca do Mundo(1978), Sinhá Moça (1986) e o O Coronel e o Lobisomem (2005), entre outras. E arriscou produções locais como Sobre o domínio da fé(1995), Forró em Cambahyba (2013) e o mais recente deles, o Faroeste Cabrunco (2022), fora documentários sobre o ciclo do açúcar ou o advento da exploração petrolífera.
E não parou por aí: além das locações, Campos deu ao mundo atores como Tonico Pereira, Zezé Motta e Milton Gonçalves, artistas que, por seu talento, conquistaram o coração de multidões Brasil afora.
Qual a melhor época para viajar?
A melhor época para visitar Campos é entre maio e agosto, quando as temperaturas são mais amenas (média de 22 °C), e o clima é seco e ótimo para quem deseja explorar a arquitetura histórica e os distritos rurais sem se render ao ar-condicionado. Também é nesse período que ocorrem eventos como o Festival Doces Palavras, que une literatura e gastronomia no centro histórico da cidade.
Já quem busca agito, deve apostar nos meses de outubro e novembro, quando acontecem festas regionais como a Exposição Agropecuária, que transforma o Parque de Exposições numa espécie de, vá lá, Woodstock campista com vaquejadas.
Como chegar?
De carro é um estirão de 4h30 a 5h30 saindo do Rio. uma passagem de ônibus do Rio para Campos começa em torno dos R$ 70 com duração média de 5h30. Havia uma conexão aérea, operada pela Azul, mas que encerrou suas operações em março deste ano.
Onde comer?
Entre os restaurantes mais recomendados de Campos estão o Romano, o Kantão do Líbano, o Espaço Gourmet, o Don Pasquale e o histórico Restaurante Cheirin Bão, instalado num antigo casarão. Este último preserva tanto o sabor quanto a memória, com receitas típicas da culinária campista como o carneiro assado e o doce de leite de tacho.
O TripAdvisor e o Google Reviews colocam todos com média superior a 4,5 estrelas. Há ainda bares em casarões antigos, com música ao vivo e cardápio autoral. Comer em Campos pode não ser uma experiência cinematográfica, mas com certeza é nada dramática.
A mais recente produção da cidade
Ele talvez seja o mais improvável dos westerns já realizados ao sul do Texas, especialmente se o Texas for substituído pelos canaviais do Norte Fluminense. Faroeste Cabrunco, filmado em Campos e lançado em 2022, é uma produção de orçamento modesto, alma barroca e poeira campista no figurino.
O filme subverte o clichê do herói solitário: aqui, o protagonista é o misterioso Peregrino, que desce ao sertão urbano para confrontar um General autoritário e decadente, vivido por ninguém menos que Tonico Pereira, em performance à altura da caricatura do caos nacional. A película, toda produzida com atores e equipe locais, é uma alegoria política e social embalada no couro velho do faroeste clássico — só que com sotaque e cangaço estilizado.
A direção e roteiro é de Victor Van Ralse. O projeto sobreviveu à pandemia e à escassez de verbas como um legítimo sobrevivente do Velho Oeste campista. Os figurinos, assinados por Emanuelle Barros, misturam couro, chapéus, máscaras e peças religiosas, evocando uma estética entre o misticismo nordestino e o expressionismo de um Glauber Rocha revisitado.
A trilha sonora original, composta por Breno Vieira, faz o que pode para costurar tensão, respiro e ecos de sanfona num deserto onde nem o trem passa mais.
Exibido no circuito de festivais, o filme vem sendo elogiado por sua inventividade e espírito iconoclasta. Se não há muitos duelos, ao menos há um país inteiro para ser entendido a partir da poeira que se levanta a cada olhar silencioso dos personagens. Faroeste Cabrunco talvez não reescreva os manuais do gênero, mas sem dúvida prova que o sertão agora começa no Paraíba do Sul.
Fonte: Agenda do Poder
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